Vilanias, ah, vilanias...
Nosso novo vilão favorito, o trauma geracional, pelos olhos de uma sobrevivente.
Esses tempos circulou no Twitter uma postagem com um apelo: “Disney, por favor, nos dê vilões que são maus e sabem disso de novo. Sem trauma geracional ou “vilões” moralmente questionáveis, apenas maldade pura.” O pedido, acompanhado das imagens de Scar (Rei Leão), Malévola (A Bela Adormecida), Hades (Hércules) e Úrsula (A Pequena Sereia), ganhou milhares de likes e retweets. Cabe, aqui, uma confissão: eu amo uma vilania. Já perdi a conta de quantas vezes torci mais pelos vilões do que pelus mocinhes, principalmente quando julgava tais mocinhes chates, como no caso da Ariel. Então, é, acho que entendo um tanto a frustração que a ausência desses personagens pode gerar. Por outro lado, tenho a-m-a-d-o essa onda de filmes com histórias que vão muito além do clássico maniqueísmo disneyano.
Para falar um pouco sobre isso, vou me basear em três filmes recentes que têm família como tema central: Os Mitchells Contra as Máquinas, Encanto e Red: Crescer é uma Fera. Meu repertório está bastante limitado pelo “desânimo generalizado da pandemia”, que encurtou minha disposição para assistir a coisas em geral, mas, do que vi por aí, esses três filmes foram bem badalados e os últimos dois provavelmente apareceram na cabeça de vocês quando “trauma geracional” foi citado ali em cima, né?
Pra começar na honestidade: eu não gostei de Mitchells. Lembro de terminar de assistir já falando que é uma grande “propaganda familista” – e eu odeio propaganda familista. Os Mitchells Contra as Máquinas é uma história sobre pais que só enxergam valor na criatividade da filha mais velha quando outras pessoas demonstram admirá-la; é uma história que reforça a ideia de que devemos algo a nossos pais por conta da decisão deles de nos colocar no mundo e dos sacrifícios que eles precisaram fazer para arcar com essa decisão; é uma história na qual um pai quebrar o instrumento de trabalho da filha e em seguida cancelar os planos dela é visto como quase positivo, afinal, se não fosse isso, eles não teriam salvado o mundo. Talvez dizer que “não gostei” de Mitchells não seja tão honesto assim. Talvez eu deva admitir: eu odiei Mitchells, apesar da arte linda. (E isso me deixa bem triste, pois Mitchells não é da Disney e gosto bastante quando outros estúdios conseguem competir com o monopólio disneyano.)
Acontece que, em Mitchells, o famigerado trauma geracional não está presente como tema. Mitchells tem uma vilã: PAL, a inteligência artificial que quer se livrar dos humanos. Mas PAL não tem o carisma de Scar ou o charme de Malévola. PAL, apesar de ser uma criação humana, age como uma força da natureza: poderosa, implacável e imutável. PAL é apenas uma força externa que, mesmo que circunstancialmente, serve para unir a família. Tematicamente, Mitchells quer falar sobre os defeitos e falhas que nos tornam humanos e o amor que deve estar acima disso. Para quem viveu o pesadelo de uma família abusiva, Mitchells não passa de propaganda familista.
E isso me leva a Encanto e Red, filmes que tentam abordar relações familiares complexas e não abrem mão da responsabilização das gerações anteriores pelos percalços enfrentados por todos. Pessoalmente, sinto que Red faz um trabalho melhor nesse quesito, mas ambos os filmes pelo menos reconhecem as hierarquias familiares e suas possíveis consequências. Talvez seja possível inclusive traçar esse reconhecimento ao fato das figuras maiores de autoridade nas histórias serem matriarcas; talvez dê para pensar que a figura do pai abusivo traz consigo uma carga de violências tão difícil de lidar em um filme para todas as idades que as pessoas que criam essas histórias acabam preferindo trabalhar violências mais “feminas”.
Seria difícil apontar um único motivo pelo qual gosto de vilões, mas tenho certeza de que ter crescido à sombra de uma irmã tida como mais bonita, gentil e feminina do que eu cabe nessa lista. Em Encanto, a figura de Isabela imediatamente me remeteu a minha própria história, apesar de eu me sentir mais Luísa que Mirabel. Em filmes com vilões e mocinhes, qualquer protagonista muito perfeitinha, dócil e feminina me deixava incomodada. Qual o problema da Úrsula? Que ela é gorda? Que os outros acham ela feia em comparação com Ariel e as outras sereias? Pois bem, eu não me identifico com Ariel e as outras sereias. Eu me identifico com a Úrsula.
Não acho que livros e filmes têm a função de ser didáticos, mas é inegável que aprendemos com o que lemos e assistimos. Infelizmente, para mim, isso quis dizer me ver com muito mais frequência como vilã do que como mocinha. Mocinhas são mulheres, são puras, altruístas, bonitas, gentis, femininas, hétero. Eu não me via como nenhuma dessas coisas, já que cresci sendo chamada de monstro e não de princesa. E é um trabalho diário e eterno me lembrar de que não preciso não ser gentil só porque não sou mocinha.
Se perder uns bons vilões significar de qualquer forma ganhar mais crianças que não se enxergam como monstros, eu tô é bem feliz. Só espero que, quando lidando com famílias, não se confunda, como em Mitchells, conflito com abuso. A ideia de que o amor familiar está acima de tudo, sim, é uma baita vilã.
Ainda sem joguinhos em 2023 :(
O ano começou, mas minha jogatinas ainda não. Aceito recomendações! Mas deixo aqui, então, uma recomendação de livro: Noir Carnavalesco, do Ian Fraser, foi minha primeira leitura do ano. Tranquilo de ler em um dia, divertido, bem amarradinho e recheado de referências brasileiríssimas!
Vivo um pouco do oposto disso. A leitura social de alguém como eu (um negão de 1,95cm de altura) é sempre do predador, do bruto, da força e da destruição. Convido a reflexão e achar um arquétipo na cultura pop de uma figura com as minhas características físicas, que não seja atrelado a força bruta, e normalmente associada a pouca inteligência.
Com isso, sempre busquei no dia a dia me afastar desse padrão de vilão que o racismo social me impele. E tento ao máximo me adequar ao comportamento dos mocinho. Ainda assim, heróis planos e sem profundidade, perfeitos em sua existência, me incomodam muito. Talvez muito mais do que vilões, que carregam a vilania em sua natureza. Herói que não precisa lutar com o próprio lobo mau interno para demonstrar sua virtude, para mim, é só mais um babaca privilegiado ganhando parabéns por fazer o mínimo.
Sobre a dica, o jogo Dandara (tô jogando no celular) é uma boa pedida. Jogo de plataforma 2d desenvolvido por um estúdio brasileiro. Mistura puzzle e aventura de uma maneira bem legal. O visual com referências a arte e cultura pop brasileira é um dos atrativos.
Fiquei pensando, enquanto lia seu texto, se esse sumiço dos vilões não foi também um momento de reflexão sobre tudo isso que você colocou, um movimento rola há um tempo.
Quem são os vilões? O que defendem os heróis? Será que eles são heróis mesmo? Tudo pode ser visto numa visão binária?
Por outro lado, nem sei se essa reflexão faz sentido, já que tudo se desembocou numa lógica de funcionamento bastante liberal e voltada pro consumo.
Enfim, foram as coisas que surgiram enquanto lia.
Eu fui pro Pokémon Scarlet e essa tem sido minha única diversão desde que zerei Disco Elysium e Kentucky Route Zero.