Personagem, para que te quero?
Hoje vou reclamar de personagens de outras pessoas e fazer propaganda dos meus.
Breve ensaio sobre personagens, seus enredos e minhas implicâncias
Spoilers: Dark, 1899
Em todas as aulas que tive com o professor Assis Brasil na graduação e no mestrado em Escrita Criativa, a questão essencial da personagem foi citada. De acordo com o professor, essa característica é a espinha dorsal narrativa da pessoa ficcional; é o que vai definir como ela se comporta perante qualquer conflito, qualquer tomada de decisão. Ele, é claro, explica isso de maneira muito mais elaborada (e é possível ler a respeito em seu livro, o Escrever Ficção), mas trago essa experiência porque tenho certeza que, se você escreve e estuda escrita, já deve ter ouvido alguma “fórmula” de criação de personagens.
A ideia do desejo contra a necessidade, por exemplo, é bastante conhecida: a personagem deve começar a história querendo algo, mas essa vontade destoa do que ela precisa aprender para mudar, melhorar, ser feliz, ou qualquer que seja o arco desejado. Há, ainda a ideia de um comparativo entre o que a personagem quer, como a personagem se enxerga e como a personagem enxerga o mundo no início e no fim da história. A youtuber Abbie Emmons, de onde acho que peguei essa segunda técnica, inclusive disponibiliza fichas de personagem para ajudar autores em suas criações, e duvido muito que ela seja a única influencer com esse tipo de material.
Essas são três maneiras de pensar personagens, só três das inúmeras por aí. Uma busca por “character creation writing” no Google traz literalmente milhares de resultados. E é por isso que eu ainda me espanto quando vejo uma produção milionária de audiovisual que nem parece tentar construir personagens interessantes ou com algum tipo de desenvolvimento. É. Eu assisti 1899.
Vamos começar do começo: eu não assisti Dark, a outra série dos criadores de 1899. Não me chamou muito por parecer muito... triste? Eu acho? Junto com toda a pira da fanbase sobre como é uma série para “pessoas inteligentes”. Sei lá, é o tipo de coisa que me afasta. De qualquer forma, tudo que eu ouvi sobre Dark parecia demonstrar criadores bem competentes: pessoas capazes de criar uma série com início, meio e fim, cheia de conexões e revelações atravessadas por viagens no tempo e múltiplas realidades, e personagens complexas que levam o enredo por três temporadas com tranquilidade, mesmo quando atuadas por atores diferentes.
Esse contexto me deu alguma fé em 1899, que tem um trailer bem intrigante e bonito, além de prometer um tanto mais terror do que a série entrega. Um resumo muy resumido da premissa, caso você esteja aqui lendo por não se importar com spoilers: Maura, uma passageira em um navio chamado Kerberos, em 1899, acredita que seu irmão estava em outro navio da mesma companhia, o Prometheus, que sumiu há alguns meses. O Kerberos carrega mais de mil passageiros entre a classe econômica, cheia principalmente de imigrantes dinamarqueses, e a primeira classe, com um elenco bem variado de pessoas que falam línguas diferentes e, portanto, pouco se entendem fora de seus pequenos círculos. Durante a viagem, o Kerberos recebe coordenadas e o capitão decide que eles devem tentar resgatar sobreviventes no navio perdido. Chegando à embarcação, porém, eles encontram apenas um menino que se recusa a falar, enquanto uma figura misteriosa se infiltra entre os passageiros. E aí temos o mistério que conduz Maura, a protagonista, Eyk, o capitão, e os outras personagens mais centrais pelos oito episódios da série.
O mistério é interessante, mas a série tem um foco bem nítido nas personagens. Pessoalmente, acho a abordagem ótima: enredo e personagens não são opostos, são complementares, e um bom mistério com bons personagens é receita pro sucesso. Só que 1899 não tem bons personagens, tem bons conceitos de personagens que não são desenvolvidos.
A protagonista, Maura, por exemplo, começa a série investida em encontrar seu irmão, que teria enviado a ela uma carta com um recorte de jornal falando do Prometheus e a frase “O que está perdido será encontrado”. No primeiro episódio, descobrimos que Maura estudou medicina, apesar de não poder praticar por conta da época, e que ela não se importa muito com classe, pois se voluntaria para ajudar uma moça grávida na classe econômica. Também há uma ênfase curiosa no fato de ela não poder ter filhos em uma cena que nitidamente só está ali para informar a audiência disso. Como essas características estabelecidas são desenvolvidas na história? A questão do irmão é completamente deixada de lado até o último episódio, possivelmente porque a série vai explorar isso em temporadas seguintes; apesar de ajudar com uma questão física da gravidez, Maura se posiciona frequentemente como alguém que focou seus estudos na neurociência, em diálogos às vezes dolorosamente expositivos dos temas da série (ela literalmente conversa sobre o papel do cérebro em perceber e criar a realidade ainda nua depois de transar com o marido em um flashback); há uma cena com um médico homem falando que mulheres não deveriam praticar medicina por deixarem suas emoções falarem mais alto, mas a série está tão pouco interessada nisso como tema que o médico nunca mais é visto depois dessa cena; no fim, ninguém ali se importa muito com classe, pois os passageiros se misturam indiscriminadamente a partir do meio da série e elitismo nunca é uma questão central; Maura obviamente é mãe, na verdade, apesar de não ter nenhum momento do tempo presente no qual ela se sinta conectada com essa ideia e isso faça mais diferença para o enredo do que para a personagem.
Acho que esses problemas são um tanto ligados com setup e payoff, a ideia de que quando a gente quer chegar em um ponto em uma narrativa, o jeito mais interessante é construir isso e, então, entregar a resolução. Se só falamos de algo e depois deixamos de lado há a frustração de situações sem propósito e se só mostramos algo acontecendo sem ter conduzido a história até ali as coisas parecem súbitas e, portanto, desinteressantes. Quando começamos o mistério investidos na busca pelo irmão de Maura e isso fica tão em quinto plano durante todo o miolo da série, não é muito interessante o payoff de que ele está no comando da simulação. Afinal, não sabemos nada a respeito dele, não estamos mais investidos em descobrir onde ele está. Nem Maura parece se importar tanto assim com ele, já que ele só é mencionado em alguns diálogos em momentos que o enredo pede. Quando isso ocorre, a sensação é mais de “ah, é, tinha isso aí do irmão, né?” do que “ah, sim, vamos lá, nos dê mais informações sobre o irmão!”
Uma outra questão, porém, é o desequilíbrio entre as necessidades do enredo e as necessidades das personagens. Conceitualmente, 1899 quer dar destaque a ambos, com múltiplas personagens tendo seus passados mostrados em flashbacks e muitas cenas que focam nas interações entre eles. Só que isso tudo fica meio perdido: Lin Yi, uma moça chinesa que tomou o lugar de uma amiga prostituta na viagem após matá-la sem querer, protagoniza cenas fortes: ela fala em tom acusatório com a mãe, que descobrimos não apenas ter passado a vida se prostituindo, mas também expondo a filha aos seus encontros, por falta de opção; é examinada por sua cafetina, que já desconfiava da armação, mas descobre a virgindade de Lin Yi e decide usar isso para ganho próprio; foge e se esconde em uma caixa, onde tem visões do passado; é salva por Olek, um operário do navio que não fala sua língua, mas que a ajuda a se esconder; decide seguir com o plano e se prostituir com falas sobre como ela nunca deveria ter sonhado; vai ao quarto onde seu primeiro cliente a aguarda, mas ele acaba por querer apenas companhia e tem uma convulsão; ela vê sua mãe se jogar para fora do navio; fica com o grupo de sobreviventes e decide beijar Olek por ele ser “diferente dos outros homens”; ajuda a colocar o navio em movimento alimentando as fornalhas de carvão; vê Olek desaparecendo na tempestade e consegue se salvar sozinha offscreen; fica para lá e para cá quando os criadores não sabem mais o que fazer com o casting secundário; está na cena final dos sobreviventes encarando uma forte luz, cercados por construtos. Se tudo isso parece muito desconexo do resto da história, é porque é.
Acho justo pedir desculpas pela segunda “lista de coisas” aqui, mas acho que acaba sendo importante pra evidenciar como a série é meio desconectada de si mesma. Lin Yi é uma personagem pretensamente profunda por ter um passado “sombrio”, pois matou sua amiga, mas não faz nada além de reagir ao que acontece em sua volta e sente apenas o que a série quer que ela sinta. A história dela poderia, sim, ser mais dela e não estar tão conectada com os eventos externos, mas a ideia de que tantos dos passados mostrados são apenas “eu matei alguém” é meio... sei lá, falta de criatividade. Não que alguém não possa querer beijar um desconhecido logo após ver a mãe se suicidar, mas é um tantinho estranho, pra mim, esse papinho de “você é diferente dos outros homens” que ela tem com Olek – lembrando que eles não se entendem.
Aqui entra a questão das línguas. Existem algumas personagens que falam mais de uma língua, geralmente inglês e sua língua nativa (as exceções são Virginia, a cafetina, que é falante nativa de inglês e fala cantonês, e Ramiro, que fala português e espanhol), mas grande parte do elenco fala uma única língua. De primeira, isso parece muito interessante como possibilidade de conflito, mas logo aparecem cenas nas quais alguns personagens parecem se entender acima da língua. Isso também poderia ser interessante como motivação para questionamentos por parte das personagens, mas... a verdade é que para o enredo às vezes é bom as personagens entenderem as intenções umas das outras, mas às vezes também é bom que isso não aconteça para que possam acontecer confissões protegidas pela falta de compreensão. Vez que outra alguém (normalmente Ramiro) lembra de falar que não está entendendo nada, mas consegue seguir instruções tranquilamente de qualquer forma.
Mil anos atrás, eu era fã de Supernatural. Aquela coisa: fã das primeiras cinco temporadas, que são fechadinhas, bonitas, lindas, maravilhosas. E Supernatural lida muito, muito bem com ter uma história maior do que o que cabe em uma temporada, mas ainda assim ter histórias com início, meio e fim no decorrer das diferentes temporadas. A ideia era ter um final satisfatório para a série caso mais temporadas não fossem feitas, mas ter esse fio condutor de uma história maior caso a Warner desse sinal verde para a continuidade da produção (e ô, se deu esse sinal verde). Trago o exemplo de Supernatural porque acho muito possível que as próximas temporadas de 1899 tragam respostas e explicações para as pontas soltas e elementos aparentemente desconexos ou fora do lugar desse primeiro momento, mas isso não é suficiente. É claro que perguntas podem e devem ficar em aberto em uma história que se propõe tão cheia de reviravoltas, mas as coisas que acontecem na temporada também precisam ter resoluções e consequências dentro do próprio runtime, ou a série corre o risco de não cativar a audiência para sua continuidade. Isso fica ainda mais importante quando há a perspectiva das memórias de praticamente todas as personagens ser resetada no início da próxima parte.
Sou super a favor de séries que se reinventam. 1899 me lembra The Good Place, que tem uma primeira temporada genial e, depois, dá uma leve patinada antes de mudar de direção. Mas esse momento inicial é ótimo, nos dá muita perspectiva de quem são as personagens e esconde muito melhor a revelação de simulação. Não é muito difícil pescar a ideia nos primeiros episódios de 1899, ainda mais com o histórico de Dark, e a patinagem já acontece dentro da primeira temporada.
Não sei se vou ver uma próxima temporada de 1899 (ainda mais se sentir que a questão do plágio é real, já que pretendo ler a HQ brasileira na qual os criadores poderiam ter “se inspirado”), mas confesso que, se assistir, talvez seja menos por interesse na história e suas personagens e mais pela vontadinha triste, mas existente, de ver para criticar. A primeira temporada, pelo menos, me rendeu esse texto pra newsletter.
Última semana do Kickstarter de Mahou Senshi Cosplay Club
Hoje, minha indicação de joguinho é do meu próprio bb: ra quem não sabe, trabalho como designer de narrativas na Behold Studios, e estamos com nosso jogo, Mahou Senshi Cosplay Club, no Kickstarter, o Catarse gringo. Mahou Senshi é um RPG estratégico com turnos no qual você vive uma cosplayer que ganha poderes mágicos ao criar roupas e ajuda a salvar suas amigas e o mundo da presença nefasta de deusas esquecidas. Estamos na última semana do Kickstarter com quase 300% da meta alcançada! Se quiser garantir a sua cópia do jogo e algumas recompensar extra, a hora é agora: é só clicar aqui <3
Até quando?
A ideia dessa newsletter é ser quinzenal! Então pularei a próxima semana e retorno lá no dia 16. Caso você queira me ler um pouco mais, estou no twitter enquanto ele ainda existe e também tenho um site com alguns continhos: www.kalidelossantos.com. Em geral, é fácil me encontrar: sou Kali de los Santos em todos os espaços online nos quais tenho presença.
Pra quem fica por aqui, um abraço e até daqui duas luas!
Obrigada, Kali! Assisti até o fim a série e achei tudo jogadíssimo. Muita coisa gratuita e final caindo do céu. O início foi indo até degringolar.
De “Dark” gostei bastante, mas acho tb que há uma contraposição de épocas que ajuda, um comentário sobre música, tecnologia, etc.
Enfim, crítica melhor que a série 😽
Fiquei pensando na série enquanto lia o seu texto e tentando encontrar paralelos entre os meus incômodos e os seus hahahaha
Eu vi 'Dark' esse ano (e um pouquinho no ano passado) e é muito louco como a imagem que eles se construiram com o histórico dessas séries é de um local de "tramas complexas e intrincadas para pessoas atentas e inteligentes", porque, apesar de ter aproveitado a série, é uma complexidade bem artificial. Dito isso, acho que algumas questões de conflitos mal explorados têm eco em 'Dark' (se um dia você se arriscar a ver, é interessante como a resolução final de tudo tem a ver com uma situação específica que foi esquecida lá na primeira temporada), mas gosto mais de como os personagens são construídos lá porque o loop envolve viagem no tempo e aí tem o lance de acompanhar personagens em lugares diferentes, tem uma construção que envolve marcas corporais, etc. Acho legal.
No '1899', concordo bastante com você das potencialidades mal exploradas. Comecei a ver a série, ainda fui comentando aqui em casa sobre como poderia ter um lance de Babel, ou se as questões mais ~simbólicas~ do Prometeus e Cérbero... mas fica por isso mesmo, né? As línguas são diferentes, mas não fazem sentido. Os passados assombrosos são meio genéricos. O que mais ficou para mim foi uma espécie de espelho da primeira temporada de 'Westworld', do loop na simulação como a busca de si e o labirinto, mas de uma forma subaproveitada por causa desses problemas. (Acho que 'Dark' carrega um pouco da mesma temática porque, para o loop das viagens no tempo deixar de acontecer como sempre foram, as mudanças precisam ser feitas devagar, no nível do cotidiano, um loop de cada vez, etc.)
Me parece que os melhores personagens acabaram sendo aqueles mais planos, sem muitas complexidades ou nuances, tipo a mãe religiosa: ela é o que é e acabou. Os outros, com dilemas profundos, não sustentam a profundidade que deveriam ter — e apostam que a falta de conexão entre profundidade anunciada e a vivida é ~uma complexidade escondida na trama~, não um problema no desenvolvimento.