No ano de Elden Ring e God of War: Ragnarok, tive meu primeiro contato mais amigável com jogos da From e com a continuação do clássico de PS2. Mantendo a temática meio nórdica, indico mais um joguinho de puzzle, também.
Breve ensaio sobre inimigas em joguinhos de bater
Elden Ring foi o primeiro jogo da From Software que eu joguei, apesar de ter assistido gameplays inteiros de Dark Souls, Dark Souls III, Sekiro e Bloodborne. Existem mil diferenças entre todos esses jogos, certamente, mas as que mais me chamaram atenção são as que, pra mim, tornam o jogo mais “realista”: a fauna viva inofensiva e a existência mais proeminente de mulheres. A inexistência de fauna que não seja considerada inimiga em muitos jogos é algo que me incomoda, mas fica pra outro dia. Hoje, quero dar uma olhada nessas mulheres aí de Elden Ring.
Apesar de eu ter críticas ao G. R. R. Martin, uma coisa a obra dele, principalmente com o sucesso da série da HBO, ajudou a popularizar: a ideia de que mulheres... bem, existem. Game of Thrones tem um pé muito firme na ficção histórica e, exatamente por isso, não subestima suas mulheres apenas porque elas geralmente caem nas categorias “puta ou nobre”. Martin sabe o valor e o impacto que uma puta pode ter na vida de quem serve, sabe as tramoias que nobres armam para conseguir o que desejam, sabe do poder que uma sacerdotisa pode exercer em homens que se acreditam certos acima de tudo. E, sabendo disso, Martin cria mulheres guerreiras, mulheres independentes, as famosas “mulheres fortes”, sem fingir que o gênero não era uma questão nos contextos europeus nos quais se inspira, mas também não ignorando que muitas vezes, enquanto os homens bebiam, as mulheres decidiam seus destinos. E Martin foi o criador do passado de Elden Ring.
É difícil saber até onde vai a influência do autor no jogo. As figuras principais – Marika, Radagon, Godwyn e suas proles – parecem nitidamente ter saído da mão do autor. Mas desenvolvimento de jogos não é um campo fácil pra apontar autorias: de repente alguns deles já eram ideias que Hidetaka Miyazaki, diretor do jogo, tinha, e Martin apenas as contextualizou; de repente alguém da equipe teve uma ideia incrível pra um design de chefe que foi aprovado e incluído depois do trabalho de Martin terminar; de repente coisas criadas por Martin não entraram na versão final por falta de tempo; e por aí vai. Além disso, é difícil dizer o quanto do mundo que exploramos ao jogar – os inimigos mais comuns, chefes em arenas abertas, pontos de interesse e personagens que encontramos – foi influenciado por Martin. E, apesar de Elden Ring ter uma chefe mulher que entrou pros rankings de chefes mais difíceis da From, é no caminhar pelas Terras Intermédias que senti a maior diferença desse jogo para os outros empresa: a quantidade de oponentes com aparência no espectro do feminino.
No processo de atribuirmos gênero a quem vemos, coisa que a sociedade nos ensina a fazer desde pequenos, existem marcadores que apontam para o masculino e o feminino. Quem decidiu isso e por que essa divisão é binária são perguntas importantes, mas que, no contexto de analisar os personagens de um jogo, acabam não sendo produtivas. Então, me acompanhem aqui: o uso de “masculino” e “feminino”, daqui pra frente, usa esse consenso social que, mesmo sendo extremamente questionável, é vigente. Assim, quando vemos um inimigo em um jogo e a arte não apresenta seios, cabelos longos, cintura fina, quadris largos e outros supostos marcadores de corpos femininos, pressupõe-se que esse inimigo é masculino. O contexto também ajuda: se a imagem mental mais comum de guerreire é masculina, mesmo um esqueleto com farrapos de roupa e armadura será provavelmente lido como homem.
Uma pessoa pacienciosa do reddit em algum momento checou os esqueletos em Dark Souls, jogo um tanto mais antigo da From, e averiguou pelo formato da pelve que todos os esqueletos do jogo eram de corpos com pênis – que não são masculinos per se, mas se tratando de um jogo... só nos nossos headcanons alguma dessas ossadas pertencia a uma mulher trans. Essa mesma pessoa analisou os inimigos que tomam forma de animais e outros tipos de criaturas, como pessoas-cogumelos, e o levantamento final aponta para uma maioria absoluta de inimigos comuns dentro do espectro do masculino.
Aí, porém, também entra a questão da língua. Para um falante nativo de inglês, é muito mais natural se referir aos lobos selvagens de um jogo com “it”, um pronome neutro. Em português, como as palavras em si tem gênero, a neutralidade fica muito mais difícil de alcançar. É claro que, dentro das convenções da língua, um grupo de cachorros, no masculino, pode conter cadelas, assim como um grupo de preguiças pode conter animais de qualquer sexo, mesmo a palavra sendo feminina. O exemplo dos cachorros, porém, nos mostra que quando há distinção entre macho e fêmea já na palavra usada para nos referirmos aos bichanos (e monstros, cogumelos gigantes, horrores cósmicos e tudo mais que pode ser morto em um jogo), a pluralização fica no masculino. Então, o esforço dessa pessoa no reddit, quando focado nas criaturas não-humanoides do jogo, vem para tentar distinguir “he”s e “she”s nos “it”s que são os monstros; pra nós, em geral, são automaticamente “eles”.
Mas em Elden Ring essa busca tão minuciosa fica menos necessária: apensar de ainda termos muitos inimigos que são “cavaleire genérique que poderia sim ser uma mulher, mas que vai ser lide como homem”, também existem inimigas: camponesas psicopatas, feiticeiras de fogo, sacerdotisas de cidades subterrâneas, arqueiras montadas em lobos gigantes e até uma ordem especial de assassinas. É claro que esses grupos ainda são uma minoria se somarmos o total de inimigos do jogo, mas eles trazem algo que muita gente não pensa quando falamos de distribuição de gênero: verossimilhança.
O post do reddit que mencionei acima começa com a pergunta: para onde foram todas as mulheres dessas terras devastadas? Morreram? Mas se fosse o caso, não deveriam estar elas entre os esqueletos contra os quais lutamos? Entre os fantasmas? É claro que muitas das respostas apontam uma resposta simples: eles modelaram um esqueleto e copiaram ele trocentas vezes. Não é machismo, é economia. E eu, como alguém que trabalha nessa indústria, preciso concordar aqui: fazer esqueletos com mudanças mínimas na pelve para garantir igual quantidade de esqueletos de diferentes gêneros seria no mínimo um gasto supérfluo. Mas o que instigou essa curiosidade na pessoa que fez o levantamento foi a quase inexistência de mulheres em geral. O jogo não é machista por não ter “esqueletas”, mas ele se torna inverossímil a um olhar atento quando nem nas catacumbas, e nem em nenhum outro lugar, parece haver paridade na distribuição de gêneros.
Um outro exemplo disso que me pegou muito, mas fora dos joguinhos: na primeira temporada de The Expanse, uma série bastante preocupada com diversidade, há diversas cenas nas docas de Ceres, um planeta anão habitado pela população mais pobre da galáxia, nas quais os atores que preenchem as cenas são todos homens brancos. Ceres e sua população são constantemente tidos como diversos; homens e mulheres trabalham de igual para igual e isso é bastante reforçado no elenco central, mas os trabalhadores que fazem parte do cenário não o são. Não sei qual o motivo, se foi descuido ou apenas uma questão de oferta e demanda, mas certamente impactou minha imersão, pois o que eu estava vendo não condizia com o que a série tentava me falar sobre o lugar.
E aí, finalmente, entra God of War (2018), que eu acompanhei o Conje™ jogar nas últimas semanas em preparação para a continuação que foi lançada há poucos dias. E, além de ter uma única personagem mulher que interage com Kratos e seu pimpolho, o jogo, que é lindo, tem trilha sonora linda, jogabilidade linda, etc, etc, tem, pelos meus cálculos, apenas dois tipos de inimigos “femininos”: as valquírias, que estão “corrompidas” e agradecem depois de levar uma surra (ainda que exista uma explicação in-game, sempre acho curiosa a ideia de gente agradecendo por apanhar), e as revenants, bruxas que quase sempre atacam em conjunto com outros inimigos. E... só.
A questão, aqui, é que as inimigas em Elden Ring tornaram os espaços do jogo mais vividos, enquanto sua ausência tornou Midgard mais nitidamente um palco com peões distribuídos. O vilarejo decadente no qual dançam mulheres que poderiam ter saído da versão zumbi de Midsommar é um excelente exemplo disso: são mulheres fazendo seu ritual, de boas, sua dancinha macabra. O problema é quem chega vasculhando o povoado e finalmente entrando em conflito com as zumbizas dançantes e o que parece ser um de seus líderes religiosos. Os famigerados level design e content design, além do meu chuchu narrative design, acabam sendo relevantes para dar essa sensação, é claro, mas a variedade de combatentes possíveis também conta histórias por si.
Pode parecer meio injusto colocar Elden Ring e God of War, jogos tão distintos em escopo, juntos aqui. Elden Ring é enorme, com uma jogabilidade muito mais aberta e uma história contada de forma fragmentada; God of War é um jogo relativamente curto e restrito que quer contar uma história específica e relativamente linear. Mas pra mim foi muito difícil não achar decepcionante a ausência de figuras femininas na Midgard de God of War, ainda mais quando a mitologia nórdica tem tantas figuras femininas interessantes e duas delas (Frigga e Freya) foram misturadas em uma só e reduzidas a “mãe” no fim das contas.
Também não digo de forma alguma que Elden Ring é perfeito nesse sentido: ele representa, pra mim, um avanço. O pessoal do site gringo Polygon, por exemplo, tem uma opinião muito pouco positiva a respeito da chefa Malenia, a que mencionei ser uma das mais difíceis de todos os jogos da From. O site Inverse também traz um artigo, mencionado na matéria da Polygon, a respeito das figuras silenciosas e contidas que guiam quem joga pelos mundos arrasados da empresa; ele é de antes de Elden Ring, mas se aplica tranquilamente a Melina, a moça que dá os primeiros direcionamentos pelas Terras Intermédias e é vital para alguns finais possíveis no jogo. Fora esses apontamentos específicos, ressalto que os grupos de inimigas mencionados podem em geral ser considerados especiais, pois por vezes não se tratam de inimigas integradas nos ranques dos exércitos ou nas escavações de minérios, mas sim ordens separadas exclusivas para mulheres. Mas aí o argumento da parte técnica — o tempo e dinheiro que vai em criar variações, ainda que pequenas, em modelos, e a maneira como isso não tende a afetar o gameplay — ficam mais fortes.
Também vale ressaltar que a crítica ao God of War não é exclusividade minha e que os desenvolvedores aparentemente fizeram um esforço para adicionar mais personagens femininas na continuação, que parece em geral ter alguns esforços em termos de deixar os espaços um tantinho mais vividos. Vou ter que jogar pra ver.
No fim, conforme alguns joguinhos vão focando mais e mais em ter boas histórias, a questão da presença do feminino se apresenta também como questão de verossimilhança, assim como as presenças de pessoas com deficiência, pessoas negras, indígenas, ou mesmo asiáticas fora do circuito China-Coreia-Japão. Quando falamos em diversidade, falamos, também, de verossimilhança, e espero que a indústria de jogos entenda isso cada vez mais.
Passar nervoso, mas com cenários bonitos
A indicação de jogo de hoje é Dorfromantik, um puzzler lindinho com cenários inspirados nas paisagens bucólicas do norte da Europa. A jogbilidade é simples: você recebe uma pilha de peças hexagonais e precisa encaixá-las para formar rios, fazendas, florestas, cidades e linhas ferroviárias. Quanto mais lados de uma peça estiverem em contato com cenários compatíveis (floresta com floresta, cidade com cidade), mas pontos você ganha. Além de ser lindo e ter uma interface e design de som que levam para partidas mais relaxantes, você ainda pode basicamente controlar a dificuldade do jogo com desafios próprios: é possível jogar sem se importar tanto com fazer muitos encaixes perfeitos, tentando fazê-los quando possível ou até mesmo mirando apenas em jogadas com seis lados perfeitamente posicionados. E é realmente muito lindinho:
O Dorfromantik tá disponível na Steam e custa menos de trinta reais. Quem jogar, me diz o que achou depois!
Por aqui e por outros lugares
Enquanto acompanhamos em tempo real a queda do Twitter, fiz uma famigerada continha no Mastodon. Bora interagir por lá, talvez? Pra onde vocês tão indo? Me levem!! HAHAHAHAH
Até mais!
O texto de hoje foi mais textão do que textinho, me empolguei. Espero que vocês tenham curtido! Por aqui, tá sendo massa esse processo de dividir o que passa na minha cabeça. Até daqui duas luas!
Gostei de como contextualizou de forma que quem não jogou os jogos citados (eu) consegue acompanhar. Adorei!