Criação, carinho e os fazeres colaborativos
Amar e criar estão cada vez mais próximos, felizmente
Breve ensaio sobre a artesania da criatividade
No meu aniversário de 17 anos meu padrinho me levou em um evento de anime. Era um evento relativamente pequeno e novo, chamado Anime World, no pátio do antigo centro universitário do IPA, em Porto Alegre. Pra mim, que vivia minha nerdice solitária na internet, esse dia mudou tudo: passei a me vestir de outra forma, cortei e pintei o cabelo, catei comunidades no finado Orkut, entrei em fóruns. Dentre as coisas que entraram na minha vida quando minha nerdice passou a ser compartilhada, está o RPG.
A ideia de jogar RPG sempre me pareceu ótima, mesmo quando eu não sabia bem o que isso era. Ali pela quinta série, lembro de conversar com um colega que também gostava da série de livros do bruxo e propor um clubinho no qual nos vestíssemos como se fôssemos de sua turma, com alguém encenando dar aula de algo como poções ou herbologia. Queria criar personagens e, mais que isso, queria viver suas vidas naquele mundo que me encantava. Lembro, inclusive, de pedir para a minha avó fazer suco de abóbora – e de não gostar. Mas essa vontade acabou direcionada para a escrita de fanfics, para as quais eu dificilmente criava personagens, pois achava cringe (ah, quando uma palavra entra no nosso vocabulário e esquecemos todos os sinônimos que usávamos até sua chegada).
Foi só lá pelos dezessete, dezoito, que comecei a jogar RPG. Foi um início apaixonado: passei a comprar assiduamente a revista Dragão Brasil enquanto ela durou, comprei livros, dei cursos de extensão em formato de RPGs na graduação, escrevi artigos a respeito das intersecções entre a literatura e o jogo. Mas, depois de alguns anos começando campanhas que não seguiam e mestrando one shots (histórias de jogar em uma sessão só) completamente improvisados em mundos sem pé, nem cabeça, o RPG saiu um tanto da minha vida. Era um hobby legal, mas que demandava um tempo que eu estava destinando a outras coisas. Até que, em 2020, ele voltou – ou melhor, eu voltei. E é ótimo estar de volta.
Sempre me considerei uma pessoa solitária e, felizmente, essa ideia se prova cada vez mais errada. Nos últimos anos, fui de “odeio trabalho em grupo” para “gosto muito de trabalhar em equipe com as pessoas certas”, e cada dia mais me encanto com o quanto um time de pessoas criativas consegue expandir ideias e conceitos para além do que qualquer gênio solitário (a news de hoje da Clau Fusco fala disso, inclusive). E o RPG é um espaço tão intrinsicamente colaborativo que, honestamente, me pergunto um pouco como me deixei enganar pela ideia de ser um lobo solitário quando sempre amei brincar com personagens e mundos criados por mim e por meus amigos nas mesas malucas de Tormenta, D&D 3.5 e Mutantes e Malfeitores do início da minha adultez.
No instagram, a psicóloga e doutora em ciências sociais Geni Nuñez fala muito do fim das monoculturas e da artesania dos afetos. E acho que tudo isso tem muito a ver com a colaboração criativa: as monoculturas se colocam acima da diversidade, assim como os laços moldados pelas convenções sociais sufocam o brilho das relações cultivadas entre os indivíduos. Pra mim, o fim das monoculturas toca a criação quando buscamos ler e escutar o que foge do hegemônico, quando entendemos como os processos de colonização atingem nossas referências, quando saímos do suposto conforto do que já é conhecido e encontramos fontes límpidas de inspiração onde o status quo as esconde. A artesania dos afetos, por sua vez, entra nos processos criativos quando nos deixamos apaixonar por essas outras histórias, vozes, passados e futuros, quando lidamos com aquilo que lemos, ouvimos e assistimos como arte a ser apreciada, e não produto a ser consumido, quando respeitamos nosso próprio ritmo para absorver e experienciar as narrativas que nos cercam.
A vida tem sido um pêndulo que vai de “precisamos respeitar nosso próprio tempo” até “precisamos estar sempre atualizades nas últimas novidades” em tempo recorde. É claro que existem equilíbrios e malabarismos exigidos pelo contexto capitalista etc. E por isso, acredito, que o RPG tem me feito tão bem. Criar histórias com meus amores, brincar de vidas impossíveis, fazer piada, chorar, levar a palavra da revolução a cidades cheias de nobres e cultistas: momentos de afeto criativo que plantam sementinhas de carinho e colaboração nos cultivos da criatividade.
Espero que 2023 tenha mais e mais RPG pra mim e pra quem quiser. Essa é, afinal, uma edição enviada nos últimos momentos do turbilhão de emoções que chamamos de 2022 e, portanto, um desejo para o futuro não poderia faltar.
Tempo, tempo, tempo e leituras
Essa edição veio depois de um mês, e não quinze dias. Mas juro que tive um bom motivo: estava de mudança. Em duas luas, volto com mais uma edição, prometo! Enquanto isso, tenho indicações de algumas edições maravilhosas de news que tenho lido. Algumas delas são parte de um amigo secreto com troca de cartas em newletters, uma brincadeira muito linda da qual não participei por conta da mencionada mudança.
A carta linda da Vanessa Guedes pro Felipe Castilho
As reflexões do Marcello Souza sobre Wandinha
O texto maravilhoso da Ariela K. sobre leitura e escrita
E a resposta linda da Ana Rüsche, na forma de newscarta
Por fim, a Lígia Colares falando de inveja e impulso criativo
Abraços e um bom início do governo Lula,
Kali
quase dei uma choradinha de leve aqui - mandei pro meu grupo de rpg mais unido do mundo ❤️ que lindo te ler e que alegria ser mencionada na sua news!!! um ano mágico pra você, lindeza! ✨❤️☺️
Me identifiquei demais com o jogar (e me encontrar no) e parar de jogar RPG, mas ainda estou longe de voltar, acho bem improvável. Comprar religiosamente a Dragão Brasil (mesmo sendo haters de GURPS) era a minha vida. E amar trabalhar em grupo (com as pessoas certas) me representa demais!!!